09 setembro 2013

Fragmento Absurdo de um Existência Futura n°4 – A Cabeça no Meio da Rua (Final)

Essa era minha porcaria de vida, somente isso, durante vários meses.  Mas minha depressão foi diminuindo, diminuindo, até que em seu lugar surgiu aos poucos uma absoluta indiferença por tudo e por todos. Em nenhum momento, no entanto, eu deixava, sempre por volta do meio dia, de ir contemplar as colorações avermelhadas do céu, sempre no mesmo campo fedorento. Não que fosse somente naquele campo que eu percebia a invasão vermelha nas atmosferas, isso ocorria em todo o céu, de acordo, e insisto nisso, com meu julgamento perturbado. Porém, e realmente não sei o motivo, eu tinha que observar a maldição daquele fenômeno unicamente de lá.

            Mas agora eu saía do campo sentindo uma cruel indiferença que me fazia vagar o dia inteiro pelo chiqueiro da minha cidade, naquele degradante calor dos infernos, alimentando um desejo doentio de desprezar e rir de todas as merdas de pessoas que cruzavam o meu caminho. Eu olhava pra aqueles miseráveis fodidos, aqueles babacas mergulhados na lama, com uma frieza total e com e uma ironia maligna. Aqueles debilóides, homens e mulheres que não valiam nem o que cagavam, imundícias, todos inúteis, degenerados e perdidos.

            Não sentia nenhuma porra de piedade, nenhuma. Só sentia, por exemplo, vontade de rir quando via aqueles refugiados ambientais bebendo as águas podres, onde boiavam bostas, de um rio aniquilado, ou vendo que disputavam com urubus e cachorros pesteados os restos de comida com larvas dos montes de lixo. Nem mesmo as crianças que eram espancadas com violência por outras crianças, ou as mulheres que eram estupradas nos canteiros das praças fedendo a esperma despertavam em mim algum tipo de clemência. Que sangrassem todos no inferno, para mim não faria a menor diferença.

            Dessa forma degenerada e estúpida vivi por mais alguns meses. Ia para casa, comia como um porco, às vezes nem tomava banho, e voltava para as ruas escaldantes, com o único propósito de debochar, de escarnecer com crueldade, e de sacanear todos os malditos que via diante de mim. E claro, quando se aproximava do meio-dia, sem me ausentar uma única vez, lá estava eu , naquele campo torrado, contemplando em estado de transe,  abobalhado, aqueles nuances avermelhados, enfermiços, que só eu percebia. E parecia que era aquela luz vermelha que me deixava mais enlouquecido, mais monstruoso, mais demoníaco.

            Havia algo inexplicável naquelas luminosidades opacas e rubras que me atraía de uma maneira fatal. E fazia ferver no que eu sentia e pensava uma maldade latente, resumo de todo o horror humano, a plenitude do lado negro que se ocultava dentro do meu eu miserável. Assim como a atmosfera da minha cidade acabada fervia de calor eu também fervia de perversidade.

E seja lá o que for que ocasiona toda essa merda, estou certo de que é algo catastrófico.  Isso eu afirmo porque, desde ontem, dois de janeiro de 2047, tenho percebido uma alteração, para pior, em meu comportamento. Percebido e comprovado. Estou há mais de 72h sem dormir. Não sinto nenhuma porra de sono. Minhas horas de sono foram se reduzindo aos poucos atei que cessei definitivamente de dormir.

            Mas jamais deixo de ir ao campo contemplar em estado de êxtase maligno aquela agourenta luz avermelhada. Hoje, após sair do campo, fui tomado de um acesso de loucura. Peguei uma pedra enorme que encontrei na rua e esmaguei sem dó os crânios de uma criança e de sua mãe, só porque escutei que a mãe falava para a menina em “manter a esperança” enquanto comiam as tripas de um gato.

            Após ter esmagado a cabeça das duas, voltei para casa e tornei-me consciente do que fiz. Compreendi que fora um horror sem limite e sem perdão. Mas não consegui sentir nenhuma merda de arrependimento. Minha vida é mesmo um desastre, a vida de todos é um desastre, a civilização é um desastre, que diferença fará ou deixará de fazer o que fiz?

            E agora, não faz nem 10 minutos que, lá fora, na frente da minha casa, um idiota raquítico, estava vomitando. Senti um ódio diabólico esquentando, subindo e fervendo dentro de mim e não pude, e nem quis, controlá-lo. Muito pelo contrário, gosto de ser um doente, um louco e de matar humanos que pensam que estão vivos. Matar é um favor que faço às suas almas fodidas. Saí de casa e gritei:

- Seu cusco imundo, sarnento filha de uma puta, imundiciando minha calçada com o fedor do teu vômito azedo. Este machado vai te ensinar uma coisa pra nunca mais esquecer. Vou te cortar em pedacinhos e fazer guisado da tua carne aidética.

A cabeça dele ainda está pingando sangue no meio da rua.

(Na imagem, detalhe de "O Julgamento Final", de Hieronymus Bosch)

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